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Cultura

Crítica – Caminhos da Memória

Ao lado de Jonathan Nolan, Lisa Joy explorou temas de memória, identidade e narrativa ao longo da série Westworld. Neste Caminhos da Memória, dirigido e escrito por ela, Joy volta a explorar todas essas ideias, mas sem o mesmo sucesso.

A trama se passa no futuro, numa Miami parcialmente inundada Nick (Hugh Jackman) ganha dinheiro usando um dispositivo que faz as pessoas reviverem memórias e, com o mundo em caos, o mercado para escapismo nostálgico está em alta. A vida de Nick muda quando ele é visitado pela misteriosa Mae (Rebecca Ferguson) e os dois vivem um romance até que Mae desaparece misteriosamente. Agora, Nick decide vasculhar a própria memória para encontrar pistas a respeito do paradeiro da amada.

É uma trama que remete muito ao noir, com um protagonista amargurado e cínico perambulando por uma metrópole decadente e corrompida em busca de uma mulher misteriosa. O desencanto, as profundas desigualdades que o noir tanto tratava estão aqui também. O futuro mostrado pela trama, de uma Miami tomada pelas águas por conta da mudança climática com uma pequena elite vivendo as áreas secas cercada por represas e diques enquanto a população vive ao sabor das marés talvez esteja mais próximo do que estamos imaginando. As paisagens inundadas da arquitetura art decó de Miami combinadas à iluminação cheia de tons de neon e aparatos futuristas rende uma espécie de Waterworld (1995) cyberpunk.


Inicialmente a trama tenta falar sobre nostalgia em tempos de crise. Num paralelo com o mundo contemporâneo vemos uma população tentar fugir de um mundo decadente e sem perspectivas ao se refugiar nas memórias no passado. Não é muito diferente do que vivenciamos hoje e a onda nostálgica que envolve a indústria cultural, trazendo de volta tudo que gostávamos do passado para nosso entretenimento escapista. É uma nostalgia que nos impede de viver ou transformar o presente ao invés de ter algo a nos ensinar sobre o passado, nos aliena ao invés de nos edificar.

Por isso faz sentido que a trama trate nostalgia como um vício, algo nocivo que destrói a vida do indivíduo e cujos abusos podem fazer uma pessoa descolar da realidade. É isso o que acontece com quem abusa de procedimentos como os de Nick, ficando com a memória “queimada” no cérebro, vivendo esses mesmos instantes ad aeternum. Por outro lado, o modo como o filme concebe a memória é muito linear e objetivo, sendo que a memória é, por vezes, imprecisa, inexata, contaminada por nossa subjetividade, carente de fabulação e por vezes até equivocada em relação aos fatos (vide a noção de efeito Mandela) e, desta maneira, a narrativa não aproveita o potencial criativo de sua premissa.

Hugh Jackman é ótimo em fazer de Nick um sujeito tomado por pesar e amargura que encontra em Mae um alento para seus tormentos. Do mesmo modo, Rebecca Ferguson é eficiente como uma típica femme fatale do noir, uma mulher sedutora, capaz de conseguir tudo que quer, mas que está envolvida com problemas além de sua habilidade, sendo simultaneamente vítima e algoz. O problema é que ambos (e o restante do elenco, na verdade) são prejudicados pelos diálogos excessivamente expositivos, com os personagens a todo o momento dizendo como se sentem ou explicando suas motivações em voz alta. Isso é ainda pior nas narrações de Nick, que falam sobre aquilo que já estamos vendo em cena boa parte do tempo.

O mistério é bem conduzido, reproduzindo até a estrutura rocambolesca do noir no qual múltiplos crimes e indivíduos convergem e se embolam em um grande novelo de crimes que soa difícil de deslindar. O universo que a narrativa constrói, por outro lado, tem alguns problemas. Já no início Nick nos informa que Miami é um lugar instável, fervilhando com insatisfação e revolta social, mas pouco vemos disso até o clímax da história quando protestos violentos irrompem, fazendo esse evento não soar como uma construção climática de tensões sociais que foram se montando aos poucos e mais uma ação deliberada do texto.

Em outro momento, Nick explica que a cidade se tornou notívaga, com a população evitando sair de dia por não aguentar o calor extremo. Apesar desta explicação, vemos Nick perambular pela cidade durante o dia mais de uma vez e o personagem (ou qualquer outra pessoa ao redor) não parece incomodada com o calor, nem exibe qualquer traço que indique uma temperatura causticante. Deveríamos ao menos ver esses personagens suando em profusão, com marcas do suor em suas roupas e elementos similares, no entanto nada disso acontece, tornando frouxa a construção do universo.

O desfecho acaba indo na contramão da mensagem que o filme tenta transmitir. Afinal os perigos de viver preso às memórias são alertados desde o início, porém quando um personagem termina deliberadamente se entregando a reviver as mesmas memórias para sempre, o filme tenta enquadrar isso como um final feliz ou uma escolha legítima. Por tudo que tinha sido construído aqui, isso deveria ser um final trágico em que o desencanto com a realidade triunfa sobre a esperança de as ações presentes possam fazer alguma diferença. Faria mais sentido se a trama nos deixasse com o amargor e fatalismo típico do noir do que forçar para dar a impressão de um resultado positivo. A tentativa de fazer um jogo metalinguístico sobre final feliz ser uma questão de escolha também não funciona pelo elemento não ter sido desenvolvido até aquele ponto para realmente reverberar ou apresentar alguma ponderação consistente sobre como nos relacionamos com a ficção e com a vida.

Caminhos da Memória apresenta um elenco competente e algumas boas ideias sobre nossa relação com a memória, mas se perde em uma construção de mundo frouxa, diálogos expositivos e um final que soa incoerente.

Caminhos da Memória está disponível na HBO Max

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