Receber o diagnóstico de uma doença incurável é, certamente, das piores e mais temidas notícias que se pode ter. Além disso, lidar com informações, estatísticas, tratamentos, termos técnicos, médicos de diversas especialidades, num momento de fragilidade como este, é realmente um grande desafio para qualquer pessoa.
Para dar respaldo neste momento, e na defesa da dignidade e da autonomia de pacientes com prognósticos de doenças incuráveis, como o câncer, a advogada da União, mestre e doutora em Direito pela PUC-Minas, e uma das responsáveis pelo blog “Morte sem Tabu”, na Folha de S. Paulo, Cynthia Araújo escreveu “A vida afinal: conversas difíceis demais para se ter em voz alta”, pela editora Paraquedas.
O livro é baseado em sua pesquisa de doutorado, que incluiu conversas com pacientes com câncer metastático no Brasil e na Alemanha. Em 2009, Cynthia tomou posse como Advogada da União na AGU. Entre suas atribuições, estava a de defender o Estado brasileiro em casos de fornecimento de medicamentos caros pelo SUS a pacientes com câncer. “O que tornava o trabalho especialmente difícil, no entanto, era perceber que grande parte daqueles pacientes que recebiam os medicamentos requeridos acabavam morrendo algum tempo depois”, conta Cynthia na introdução do livro.
Após ouvir o médico José Luiz Nogueira, então coordenador do Núcleo de Avaliação de Tecnologias em Saúde do Hospital das Clínicas da UFMG dizer, em um evento sobre saúde, que aqueles pacientes iriam morrer, mesmo com os medicamentos que desejavam obter – porque os estágios das doenças já eram muito avançados –ela teve certeza das hipóteses que construiriam a sua tese de doutorado. “Queremos acreditar que a Medicina sempre tem uma cura. Mas ela não tem – e dificilmente terá um dia – solução para tudo”, afirma.
“A vida afinal” é o terceiro livro que Cynthia escreveu a partir de sua pesquisa de doutorado. Os anteriores são “Existe direito à esperança?” (Lumen Juris, 2020) e “Palliative Treatment for Advanced Cancer Patients” (Springer, 2023), ambos voltados a públicos especializados em Direito, Bioética, Medicina e outras ciências da saúde. Desta vez, a autora busca atingir um público mais amplo. “Eu escrevi o “A vida afinal”’, porque queria um livro estilo “Mortais”, do Atul Gawande, que chegasse ao público leigo, às pessoas que não são diretamente interessadas nos temas ou não têm conhecimento técnico”, afirma Cynthia.
Este livro é sobre isso: essas duas pessoas [médico e paciente] e a sua conversa e o poder que a compreensão entre elas tem para de fato salvar o que resta. Este livro é sobre o médico que tem que ser filósofo e escritor. O médico que precisa aprender sobre a morte e o paciente que precisa, agora mais do que nunca, aprender a viver.
Mariana Salomão Carrara
A busca da dignidade e as informações certas para tomadas de decisões
“Acredito, sinceramente, que buscar a dignidade de cada qual dentro de uma sociedade deve ser o grande objetivo da humanidade. Mas, sem dúvida, ela precisa deixar de ser a palavra vazia que acabou se tornando, uma tábula rasa disposta a receber o significado que melhor convém a cada vez que é invocada”, afirma Cynthia. E ainda “drogas que são efetivas para ‘alguma coisa’, como a sobrevida de um ou dois meses, mas de que se espera ‘outra coisa’, como a sobrevida de décadas ou a cura, também estão no âmbito da manipulação da ilusão. Só que ilusão é o contrário de dignidade”, diz a autora.
Ela afirma que dignidade tem a ver com autonomia, possibilidade de escolha, “e não com a tentativa desesperada por qualquer coisa”, diz. E defende que os pacientes saibam e tenham todas as informações certas em mãos para tomarem melhores e acertadas decisões sobre os tratamentos e sobre o seu destino. “Há poucas décadas, começou-se a questionar o que chamamos de cultura paternalista. Até então, via-se com naturalidade que decisões médicas fossem tomadas exclusivamente pelos médicos, com pouca ou nenhuma participação do doente. Hoje, exalta-se o papel do paciente na condução de sua própria saúde, buscando-se promover decisões compartilhadas entre ele e o profissional. Para que realmente participe dessa relação, o paciente precisa entender o que é ou não esperado na sua saúde e na sua vida”, diz a autora.
Cynthia viu o problema de alimentarmos uma falsa esperança, de sermos enganados em relação a tratamentos e prognósticos. E é sobre essa questão, em grande parte cultural, que ela trata nesta obra. Vem de uma dificuldade em comunicar a perspectiva de morte com clareza e sinceridade, de expor prós e contras de cada tratamento, informar estatísticas e pesquisas científicas. Dar o remédio pode ser, muitas vezes, o caminho mais fácil. Mas não o melhor para o paciente.
Camila Appel, jornalista, roteirista e fundadora do blog Morte sem Tabu
Uma das ‘chaves’ para esse processo está na capacidade e habilidade dos médicos de se comunicarem com os pacientes. “A informação acerca do efeito de não se iniciar qualquer tratamento é especialmente relevante em situações de fim de vida e principalmente à luz da realidade de excessiva tecnologização da Medicina. Ao contrário do que muitas pessoas acreditam, não iniciar um tratamento de combate a sua doença pode ser a melhor opção em diversos casos”, diz a autora no livro.
A realidade que se impõe para os pacientes nem sempre é compartilhada com todas as nuances, e pode-se dar a impressão de que os tratamentos (muitas vezes dolorosos e extenuantes) podem dar resultados que não se concretizam ao longo do tempo. “Pacientes com cânceres metastáticos – ou outros incuráveis – viverão, muitas vezes, dois ou três anos, independente de tratamento”.
Ela afirma: “mas é muito comum que o médico considere mais fácil investir em mais tecnologia a iniciar conversas delicadas e difíceis sobre a proximidade da morte com seus pacientes”. Como exemplo, ela conta a história do AVC de sua mãe. A história de superação exemplifica a sua defesa sobre a dignidade e as escolhas serem feitas de acordo com cada história de vida, cada paciente e cada prognóstico. “Dona Ana Aurora tomou todas as decisões que quis. E me deixou tomar, junto com meu pai, as que não quis. Para isso, recebeu todas as informações sobre seu diagnóstico e prognóstico. Tudo que nós sabíamos, ela também sabia. (…) sem subterfúgios”.
Foi com Cynthia que aprendi o significado da palavra cuidado paliativo: sentada no sofá de casa, lendo para minha mãe as palavras sempre didáticas dessa pesquisadora e escritora que comunica a partir do coração. Embora neste livro as verdades trazidas pela autora não sejam fáceis de ouvir, cada sentença chega com o cuidado que só existe em abraços afetuosos em momentos difíceis.
Jéssica Moreira, escritora e jornalista