Quando estreou a primeira temporada de Monstros, nova série de antologia sobre crimes reais produzidas por Ryan Murphy, acabei deixando de conferir a história do assassino Jeffrey Dahmer por já estar saturado na época de séries “true crime”. A série chega a sua segunda temporada com este Monstros: Irmãos Menendez Assassinos dos Pais contando o caso de dois irmãos que mataram os pais no final da década de 80. Eu tinha ouvido falar do caso algumas vezes, mas nunca soube muito à respeito, então resolvi conferir a série.
A narrativa acompanha os irmãos Lyle (Nicholas Alexander Chavez) e Erik Menedez (Cooper Koch) que em 1989 assassinam o pai, José (Javier Bardem), e a mãe, Kitty (Chloe Sevigny), com múltiplos tiros de espingarda. O crime chamou atenção pela crueldade e pelo fato de que os irmãos inicialmente tentaram culpar a máfia pela execução dos pais, tentando sugerir que o pai, um rico empresário da indústria fonográfica, estava envolvido com o crime organizado. O caminho até a eventual condenação dos irmãos levou quase uma década e foi marcado por denúncias de abusos físicos e sexuais que José Menendez teria cometido contra eles.
O perigo da história única
Apesar de nunca fugir do fato de que os irmãos cometeram um crime cruel e brutal, a série usa a dupla para desenvolver um consistente estudo de personagem que envolve tanto os dois irmãos, quanto seus pais e outros envolvidos no processo. Como em American Crime Story o texto entende que esse tipo de evento não é uma história única, que existem muitas camadas nos diferentes e que é possível olhar por múltiplas perspectivas mesmo que algumas delas nunca serão plenamente explicadas (afinal parte dos envolvidos na história está morta).
No início do primeiro episódio vemos os irmãos deslumbrados com a riqueza que herdaram e confiantes que não irão responder pelo crime, como fica evidente nas várias exigências que fazem aos antigos empregadores do pai. A cena do funeral dos pais deixa evidente a frase ao colocar Lyle para discursar ao som de música do Milli Vanilli que o próprio personagem teria escolhido como homenagem aos pais. É curiosa a inserção dessa música aqui, já que ela não apenas seria inapropriada para o momento, revelando como Lyle não dá a mínima para os pais, mas o próprio fato do Milli Vanilli ter se revelado uma fraude (a dupla não cantava de verdade e os reais cantores ficavam nos bastidores) funciona como uma rima temática para Lyle e Erik, que também estão fingindo ser algo que não são durante o funeral.
Por outro lado, demonstram não serem muito espertos, com Erik eventualmente confessando o crime para o terapeuta, o Dr. Oziel (Dallas Roberts), que vê naquilo uma oportunidade. Ambos soam moleques mimados que não gostam de ouvir não e resolveram matar os pais para desfrutarem da riqueza da família, com Lyle demonstrando menos remorso e mais sociopatia do que Erik, que parece mais abalado pelo que fizeram.
Conforme a trama avança, porém, conhecemos o clima problemático no lar dos Menendez, com José sendo um pai extremamente severo, que bate nos filhos, os humilha na frente dos outros e tenta controlar cada aspecto da vida deles sob a justificativa de que quer o sucesso deles. Já Kitty soa como uma mãe desinteressada, amargurada pelas traições do marido e presa em uma depressão. José ganha contornos ainda mais monstruosos quando os irmãos narram que eram abusados sexualmente por ele.
É bem perceptível que durante um bom tempo a série quer que acreditemos nesses personagens. O quinto episódio se passa em um único take enquanto Erik fala com sua advogada, Leslie (Ary Graynor), enquanto narra os vários abusos que teria sofrido na mão do pai. Ao longo de cerca de quarente minutos acompanhamos sem cortes o depoimento de Erik enquanto a câmera lentamente se aproxima do rosto do personagem e vemos toda dor, desespero e solidão em sua face conforme ele narra uma vida de abusos.
Seria fácil tornar José e Kitty os monstros da história, mas a série também não faz isso, dedicando um episódio a trazer os fatos sob a perspectiva deles. José é construído como um sujeito endurecido pela vida difícil que teve, disposto a qualquer coisa por sucesso e que repete com os filhos os padrões de violência e abuso que viveu com os próprios pais. Ele também é um sujeito mal resolvido sexualmente, que se encontra com garotos de programa, mas tenta encontrar uma série de argumentos e subterfúgios para justificar seu interesse em homens. O fato dele acreditar que atormentar os filhos do jeito que faz é um ato de amor só o torna ainda mais assustador, porque situa a crueldade dele em uma motivação compreensível, ainda que aplicada de maneira equivocada.
Do mesmo modo, Kitty é construída mulher que abriu mão de muita coisa pelo seu casamento, inclusive a profissão e a relação com a família que não aprovava a união com José. Seu ressentimento em relação aos filhos é quase uma transferência pelo ressentimento que tem pelas múltiplas traições do marido. Como ela abriu mão de tanta coisa, é mais cômodo culpar os filhos pelos problemas na relação do que pensar que fez uma má escolha em relação ao marido e todos os seus sacrifícios foram para nada. Ela também é construída como alguém com medo dos filhos agressivos que constantemente a maltratam e a fazem de empregada.
Vítimas algozes
Assim, a série desenvolve uma boa camada de ambiguidade ao redor desses personagens. Compreendendo o contexto que levou os Menendez, pais e filhos, a se comportarem do jeito que agiam sem, no entanto, absolver os irmãos pelo assassinato brutal que cometeram. Mesmo a questão do abuso é tratada de maneira ambígua, já que ouvimos apenas eles e não há muita evidência material de que teria ocorrido para além do testemunho dos dois e declarações vagas de alguns parentes. Incomoda, porém, que a série tente sugerir que Lyle e Erik tivessem uma relação incestuosa, já que é uma discussão que nunca foi parte do caso, não há qualquer evidência disso e a série joga isso em um episódio meio que para chocar o espectador, mas não usa essa ideia para nada mais que isso.
Ainda que a conduta monstruosa dos irmãos tenha sido construída em parte pelo pavoroso ambiente doméstico no qual viviam, a trama evidencia como matar os pais de uma maneira extremamente cruel foi uma escolha deliberada dos irmãos e que há neles traços de instabilidade ou sociopatia, principalmente em Lyle e sua natureza extremamente manipuladora. A cena em que Lyle pergunta à advogada se deveria chorar no depoimento ao tribunal e então automaticamente desata a chorar e fazer juras de amor à mãe morta assusta pelo modo como ele consegue mudar tão rapidamente e como consegue ser convincente em sua encenação.
A narrativa ainda examina como o contexto midiático influenciou no julgamento dos irmãos. Se no primeiro julgamento a defesa deles consegue capitalizar nas denúncias de abuso e angariar alguma medida de simpatia por eles, o fato do processo se alongar mais do que devia e perder espaço na mídia para o julgamento de O.J Simpson (algo que Ryan Murphy explorou em O Povo vs O.J Simpson) faz o público perder interesse nos Menendez. Mais que isso, o tempo permite que novas informações sobre Lyle e Erik venham à tona, eliminando a simpatia pública de outrora e facilitando a construção da imagem pública como psicopatas cruéis. A derrota no caso de O.J também faz o judiciário ser ainda mais implacável com os irmãos, já que a promotoria não estava disposta a perder outro caso de ampla visibilidade envolvendo pessoas ricas. A cena final, que retorna ao último momento em que todos os Menendez estiveram juntos deixa explícito o posicionamento da série em relação aos irmãos, enquanto José e Kitty, com todos os seus problemas, conversam para tentar fazer o casamento funcionar, os filhos tramam a morte deles de maneira fria. Assim, por mais que tenham possíveis atenuantes, o texto não esquece que foi uma execução brutal e premeditada, desmedida mesmo em relação a todo o desajuste da família.
Monstros: Irmãos Menendez Assassinos dos Pais envolve pelo complexo panorama que traça dos eventos que levaram ao crime brutal no centro de sua história, trazendo nuance ao seu quarteto de personagens tanto pelo texto quanto pela performance do elenco sem, no entanto, tentar absolvê-los.