A memória do passado orienta nosso presente e informa nossas decisões do futuro. Sem memória seria difícil até estabelecermos nossa personalidade. A importância da memória na identidade pessoal e nacional é o cerne do documentário chileno A Memória Infinita, que chega no Brasil via Paramount+, e indiretamente também pondera sobre o papel do audiovisual na preservação da memória.
O filme é centrado no casal Augusto e Paulina. Eles são casados há 25 anos e há oito Augusto descobriu que está com Alzheimer. Ambos se preocupam com a degeneração mental de Augusto e com a eventualidade de que ele não reconheça mais a esposa ou a si mesmo. O documentário acompanha o cotidiano do casal e das crises causadas pela doença de Augusto e imagens de arquivo que mostram a vida pregressa tanto de Augusto quanto de Paulina.
É tocante ver o cuidado que Paulina tem com o marido e a paciência com a qual conversa com ele nos momentos em que ele está mais confuso e o faz lembrar de quem é e da relação entre eles. É igualmente tocante como Augusto volta a se apaixonar por Paulina mesmo quando não a reconhece, revelando como o amor entre dois sobrevive até mesmo ao esquecimento.
As cenas no presente também mostram os momentos de crise severa de Augusto, em que ele fica agressivo ou choroso ao não reconhecer ninguém ao seu redor, onde está e fica chamando pelos filhos ou pelos amigos. São cenas que mostram o quão horrível a doença pode ser e o quão doloroso é para os entes queridos ver uma pessoa amada nesse estado ou incapaz de te reconhecer. Por outro lado esses momentos carregam um incômodo ético de capturar a imagem de alguém que não tem qualquer condição cognitiva de dar consentimento para ser registrado e que possivelmente sequer tem noção de estar sendo filmado em um momento de tamanha vulnerabilidade.
Sim, em alguns momentos de crise Augusto é filmado de costas ou a imagem é borrada, mas sabemos quem ele é e temos plena noção de tudo que acontece em cena. Isso sem falar do uso inconstante desse recurso, que não aparece em vários momentos de fragilidade do personagem. Eu entendo que essas cenas estão ali para nos dar a real dimensão do que é conviver com essa doença, mas o filme poderia representar isso de outras maneiras, talvez com atores encenando esses momentos, recorrer a animação. Existem inúmeras outras maneiras de fazer o público sentir a severidade da doença sem expor uma pessoa que não tem condição de dizer que quer ser exposto dessa maneira.
Além de mostrar a relação do casal, as imagens de arquivo também nos trazem o trabalho de Augusto como jornalista e sua luta em relação à ditadura militar chilena, expondo os crimes cometidos pelo regime de Pinochet visando garantir a exposição e a preservação dessas informações para que ninguém se esqueça dos horrores da ditadura. Nesses momentos, o filme lembra a importância da memória para a identidade nacional e coletiva, ponderando como é através desses constantes lembretes dos horrores do passado que podemos construir um futuro melhor e que não se permitir esquecer é um meio para evitar os mesmos problemas adiante.
Há um diálogo curioso nessas cenas de arquivo em que Augusto conversa com o cineasta Raul Ruiz (com quem ele trabalhou como ator) sobre a possibilidade do cinema ressuscitar os mortos. Ruiz diz que isso foi o que o atraiu para o cinema citando A Paixão de Joana D’Arc (1928), dirigido por Dreyer, dizendo que ao ver o filme queria salvar Joana. Augusto diz que no Chile acontece o oposto, que os mortos não são permitidos a morrer por conta dos sumiços e apagamentos da ditadura chilena, ponderando que no país o trabalho do audiovisual seria também permitir que esses mortos finalmente descansassem ao tentar revelar a verdade sobre eles. É uma conversa interessantíssima sobre as diferentes maneiras que a arte dialoga com o mundo, oferecendo catarse pela lembrança ou pela reparação de uma violência, mas que o filme passa sem refletir muito a respeito. Mesmo os paralelos sobre a memória individual de Augusto e questões da memória coletiva do país acabam não sendo explorados com a força ao qual o material se prestaria, com o filme preferindo focar mais em Augusto.
Ainda que nem sempre faça jus ao seu potencial e que eu tenha questões com o registro de certas imagens, isso, no entanto, não faz A Memória Infinita deixar de funcionar como uma importante reflexão sobre o papel da memória e da importância de sua preservação para que nunca esqueçamos quem somos.